O orvalho pela manhã

A legendagem da programação internacional para português tem uma boa qualidade em média. Por vezes há erros de tradução e ortográficos, mas são bastantes raros o que demonstra a maturidade e profissionalismo de uma parte da indústria do audiovisual.

Em alguns casos, pode ser necessária urgência de um dia para o outro, como quando recebemos um talk show americano e precisamos de o emitir o quanto antes. A indústria responde e bem e quase sempre percebe os trocadilhos, as indiretas ou as alusões da política americana. Pode haver imensos problemas em Portugal, mas a tradução e legendagem da programação estrangeira não é um deles. Os erros são tão pouco frequentes que recebemos logo de imediato emails dos espectadores tomando a nuvem por Juno, porque em Portugal odiamos generalizações, exceto as generalizações que nos dão jeito.

Na televisão portuguesa, certas palavras e expressões são traduzidas em versão suavizada porque há autorregulação e ,se não houvesse, a ERC está atenta e os espectadores também. Um “fuck you” numa série americana passa quase sempre a “vai-te lixar” na sua versão traduzida e legendada, bem como o “you are fucked” passa a “estás lixado”, com muitas outras profanidades a nem sequer constarem da tradução. O personagem insulta gratuitamente, em casa percebemos, não são necessárias redundâncias por escrito e não virá mal ao mundo por causa disso. É verdade que um ou outro “filho da puta” aparece quando tradutor se apercebe que é mesmo necessário, mas o “son of a bitch” habitual é sempre um mais ligeiro “filho da mãe” e um “shit” torna-se um católico “caraças” e não um pungente “m*rda”.

Não há, creio eu, mas não posso jurar, nenhuma lei que impeça estritamente que palavras que rimam com “orvalho”, “acetona” ou “mexer” possam surgir escritas na legendagem, mas até nas séries, filmes ou documentários que têm de levar bolinha vermelha no canto (e são por isso exibidos depois das 22h30), tradutores e televisões tendem a preferir usar a imaginação e a sinonímia. A leitura que os poderes fazem da lei da televisão obriga a uma autovigilância iliberal, mas no melhor país do mundo, um dos melhores da Europa, é muito mais engraçado malhar no acordo ortográfico.
Eis que chega a Netflix, que entra em Portugal e nas casas de quase toda a gente em menos de um fósforo. Em quase todas as séries e filmes em que os personagens usam palavrões para se exprimir, temos finalmente as traduções literais à frente dos olhos nas legendas. O tal orvalho, a tal acetona, a tal pregadeira, ali estão, exuberantes como nos dicionários de calão, incluindo em séries juvenis. Um “fuck you” é afinal um “vai-te fo**r”, embora algumas traduções optem por um “vai para o c*lho”. Já não são tempos do “vai-te lixar”.

Uma das coisas que nunca me aconteceu na vida foi pedirem a minha assinatura num abaixo assinado, mas também não assinaria um que pedisse à Netflix mais decoro na legendagem. Não convivo nada bem com limitações à liberdade de expressão e prefiro o excesso. E posso prová-lo. Nos vários anos que levo de televisão, convivi muitas vezes com o longo braço da ERC, algumas vezes por iniciativa própria, outras seguindo a queixa de incríveis espectadores que se sentem ofendidos por (e é um exemplo) um programa de culinária onde há uma matança do porco ou ainda outro programa em que o Natal e o seu cacharolete de símbolos é alvo de sátira. Em caso de dúvida, a ERC e muitas vezes os tribunais, optam pelo lado da limitação à liberdade de expressão, porque o respeitinho pelo espectador é muito bonito.

Se leu este texto e ficou com ganas de promover um abaixo-assinado para se queixar à ERC da Netflix porque talvez o seu filho imberbe ande a ler o que não devia, boa sorte.
Não só as plataformas são imunes às leis do país, ou pelo menos a lei da televisão não se lhes aplica, como a chamada sociedade civil organizada tem outras causas mais urgentes onde limitar a liberdade expressão.

Texto original publicado in Expresso – Opinião – “O orvalho pela manhã”, por Pedro Boucherie Mendes, 15.07.2020