Como é possível que filmes e séries estreiem simultaneamente em todo o mundo e já com legendas? Fomos saber como trabalham as tradutoras para português da série A Guerra dos Tronos e dos filmes de Harry Potter.
Todas as semanas, enquanto esperava para ver mais um novo episódio de A Guerra dos Tronos, Filomena Antunes podia, finalmente, descansar. Ela era uma das poucas pessoas que àquela hora já sabiam como é que a história iria desenrolar-se e até poderia dizer de cor algumas das falas de Jon Snow ou de Arya Stark. Afinal, foi ela a responsável pela tradução para português das oito temporadas da série e que permitiu que pudéssemos ver cada episódio em simultâneo com a estreia americana mas já com legendas.
Quando começou esta empreitada, Filomena não poderia imaginar que o seu nome iria ficar para sempre associado a uma das séries mais populares do mundo. “A oportunidade surgiu “por acaso”. A série foi-me atribuída pela [empresa de tradução] Moviola, como tantas outras”, conta ao DN, por e-mail, a tradutora que tem 40 anos e mora na Califórnia, EUA. Filomena Antunes começou a trabalhar em tradução audiovisual em 2004 e, desde então, já pôs o seu nome em séries como Downton Abbey e The Americans, mas também longas-metragens e até documentários da National Geographic.
No caso de A Guerra dos Tronos, Filomena Antunes recebia os materiais uma ou duas semanas antes da data de emissão. “Como recebia os vídeos com tanta antecedência antes de o episódio ir para o ar, por vezes havia cenas que não estavam acabadas. Por exemplo, onde deveria estar uma personagem a falar com um dragão estava uma pessoa com um pau comprido com uma bola na ponta”, conta. “Até à última temporada, recebia tanto os vídeos como os guiões e a tradução e a legendagem eram ambas feitas por mim.”
Passwords e marcas de água
Na última temporada, teve apenas acesso às legendas em inglês “com notas explicativas do que se passava em cada cena”. Tudo por motivos de segurança. Tal como acontece com outros filmes e séries, os estúdios querem evitar os spoilers (fugas de informação sobre a história) e a circulação de cópias piratas. “Quando tinha acesso ao vídeo, era uma cópia a preto e branco de baixa qualidade com uma marca de água no centro que, por vezes, nem permitia ver bem o que se passava. Nesta última temporada, não tive qualquer acesso ao vídeo, apenas às legendas. E o tradutor tem um código de conduta que não lhe permite divulgar nenhum dos materiais com que trabalha e, dado o secretismo em que a série está envolta, não queremos ser nós a estragar o prazer das outras pessoas revelando pormenores que são muito mais interessantes quando vistos no ecrã”, conta Filomena Antunes.
Essa é também a experiência de Sara David Lopes, 55 anos, uma das tradutoras de audiovisual mais experientes em Portugal. “Na maioria das vezes mandam-me a imagem em baixa resolução, é preciso uma password (às vezes até mesmo para os ficheiros de texto) e a imagem vem sempre cheia de entulho, tem uma marca de água, que pode ser o meu nome, o telefone e o email”, explica. “O objetivo é que não se consiga fazer cópias e, no caso de haver cópias, ser possível identificar a sua origem.”
Os tradutores sabem que não podem revelar detalhes sobre os filmes e séries que estão a traduzir mas há casos – por exemplo, com os filmes de Woody Allen ou de Tarantino ou com os filmes da série Harry Potter – em que os acordos de confidencialidade são mesmo muito restritivos, conta Sara David Lopes: “Não posso comentar o filme com alguém, claro, exigem que ninguém use o meu computador enquanto faço a tradução e obrigam-me a apagar todos os ficheiros no fim.”
Sempre foi assim. Sara David Lopes lembra-se de que quando começou a traduzir os filmes de Harry Potter estes ainda eram em película e as estratégias de segurança eram outras: “Tínhamos de ir ver o filme no laboratório e o filme não podia estar todo na mesma sala, ou então víamos dois rolos e traduzíamos e depois víamos mais dois e íamos traduzindo.” Nessa altura, ainda não havia marcas de água mas “em cada cópia colocavam um fotograma ou outra marca qualquer que permitia ao estúdio identificar a origem de uma cópia, se a houvesse.” As medidas de segurança são necessárias mas o perigo não são os tradutores, garante: “Nós somos profissionais e ninguém quer arriscar um processo com um estúdio de Hollywood.”
A melhor legenda é a que não se vê
Quando começou a traduzir A Guerra dos Tronos, Filomena Antunes não tinha lido os livros do George R.R. Martin e recorreu à tradução deles “para ser coerente com os nomes de personagens e locais que já eram conhecidos de quem seguia a série”. Porém, não considera que isso facilite o trabalho, pelo contrário, torna-se limitativo. Isso mesmo diz Sara David Lopes: “Quando comecei a traduzir o Harry Potter tive de aproveitar as traduções dos livros, que não eram muito criativas”, conta. “Temos de seguir a lógica de tradução que já existe, mesmo que não concordemos com ela.” Atualmente, a Warner tem os direitos do “mundo Harry Potter” e Sara é a responsável pela atualização do glossário oficial em português: “Qualquer pessoa que queira traduzir alguma coisa do Harry Potter tem de usar aqueles termos.”
Ambas as tradutoras consideram que é preferível que seja a mesma pessoa a traduzir todos os episódios de uma série. “Por vezes, não é possível, devido a limitações em relação aos prazos impostos pelo cliente”, explica Filomena Antunes. Mas é melhor que seja o mesmo tradutor “por uma questão de coerência em termos de vocabulário, formas de tratamento entre as personagens e até mesmo do estilo usado”.
E Sara David Lopes sublinha que tão importante quanto a tradução é a legendagem, que convém ser feita pela mesma pessoa: “Faz tudo parte de um todo. Não basta só a tradução ser boa, é também a forma como as legendas estão distribuídas e como as linhas estão partidas, se as legendas coincidem ou não com aquilo que se ouve e vê, a rapidez com que passam, tudo isso é importante.” Às vezes, é necessário ajustar a tradução para bater certo e para “caber” no ecrã em simultâneo à imagem e ao som. “É um apuramento necessário. As legendas distraem sempre um bocadinho mas a leitura tem de ser o mais fluida possível, o objetivo é que o espectador leia a legenda mas nem dê por ela, apenas está a deleitar-se com o filme.”
Quando traduz um filme, Sara David Lopes sente que conhece aquelas personagens de uma maneira mais profunda do que qualquer outro espectador, mas isso nem sempre é bom. “É um olhar diferente. Estamos atentos a tantas coisas que às vezes não tiramos prazer do filme”, diz. Filomena Antunes confessa que no caso de A Guerra dos Tronos sentiu o peso da responsabilidade: “Toda a gente vê televisão e por isso o trabalho dos tradutores audiovisuais é mais escrutinado do que o de qualquer outro tradutor. Além da legião de fãs dos livros e da série que estariam colados à televisão.” No entanto, o trabalho deu-lhe “enorme prazer”: “Acabei por me apaixonar pela série. De tal forma que acabava por a (re)ver depois, quando ia para o ar.”
Artigo publicado in Diário de Notícias, 10 de outubro de 2019